terça-feira, 8 de março de 2011

Um pouco da vida

um texto bom e gostoso sobreo Homero e suas obras, faz bem ler, curtir ele, e saber quem foi o tão famoso da literatura, aqui vai um texto gostoso e fácil da  REVISTA Vida Simples, Ed: Abril.
Boa leitura.


A Odisseia

No grande poema épico, Ulisses precisa enfrentar as artimanhas do destino com duas armas: a engenhosidade e a teimosia de viver

texto José Francisco Botelho | ilustração Estúdio Area | design Rita Carval


Na raiz da cultura ocidental (daquilo que somos, pensamos, lemos e escrevemos) existe um mistério chamado Homero. Mais que um personagem histórico, esse nome conjura um símbolo que nos alimenta e uma cifra que nos desafia – uma confluência de significados e sensações, tão vastos e indefiníveis quanto as palavras “humanidade” e “poesia”. Figura gigantesca, ubíqua, fantasticamente imprecisa, ele deixou um legado que transcende conceitos, atordoa a história e estonteia a literatura.

Apesar do traço de gênio que unifica a Ilíada e a Odisseia, estudiosos modernos afirmam que Homero jamais existiu, ou o multiplicam até a aniquilação: os poemas a ele atribuídos seriam obra de gerações de bardos da Idade do Bronze, transcritas em eras menos iletradas por escribas igualmente desconhecidos. Assim como Ulisses, Homero pode ter sido muitos, e pode ter sido ninguém.

Nos últimos três séculos, negar Homero se tornou um dileto esporte intelectual, quase um clichê erudito: um escândalo hoje tão inócuo quanto pintar bigodes em reproduções da Mona Lisa. Ainda assim, gerações consecutivas de leitores continuam a perceber ou a imaginar o vulto descomunal de uma única mente por trás da Ilíada e da Odisseia. Homero pode ser uma criação coletiva de todos os seus leitores em todas eras – e talvez por isso mesmo seja um autor infi nito, cujo apelo vai ao cerne da imaginação humana, lá onde os juízos dos críticos e as elucubrações dos arqueólogos têm pouca ou nenhuma importância.

Homero é, acima de tudo, o supremo escritor imaginativo, capaz de criar seu próprio mundo e impô-lo à realidade com selvagem maestria – conforme notou seu mais brilhante tradutor, o inglês Alexander Pope. “A faculdade inventiva de Homero continua até hoje sem rivais”, escreveu Pope em 1713, no prefácio a sua magnífi ca tradução da Ilíada. “E é a capacidade de invenção, em seus diversos graus, que distingue todos os gênios: nem a máxima extensão do estudo, do aprendizado e do labor humanos – que abarcam todo o resto – pode competir com isso.”

Homero 
Que ele tenha existido de fato ou não, hoje é apenas um detalhe a ser especulado por eruditos. Mas a potência épica dos versos atribuídos a Homero ainda hoje ressoa na melhor poesia ocidental.

O mendigo cegoDesconstruir Homero é uma obsessão moderna – os antigos gregos (mais bem resolvidos que nós) não tinham problemas em aceitar a existência do grande gênio fundador. De acordo com a lenda, o poeta teria vivido menos de 200 anos após o saque de Troia, tradicionalmente datado em 1184 a.C. Uma das versões mais difundidas de sua biografi a afi rma que ele nasceu em Esmirna, na Ásia Menor (atual Turquia), às margens do rio Meles. Seu verdadeiro nome seria Melesígenes – uma referência ao local de nascimento. Ainda jovem, Melesígenes aprendeu a cantar versos; e, na mesma época, perdeu a visão.

Cego, pobre e cheio de ideias, ele se tornou um aedo: espécie de bardo itinerante, que dependia da generosidade de sua audiência para ganhar teto e comida. Levou uma vida de memoráveis desventuras e miserável heroísmo. Durante uma viagem à Ciméria (atual Cáucaso), teria ganhado o apelido zombeteiro de homeros – que, no dialeto local, significava “mendigo cego”. Por desforra, Melesígenes adotou a alcunha e tornou-a imortal. Ainda em vida, ganhou fama como o bardo mais talentoso da Grécia, graças, principalmente, a seus relatos sobre a guerra de Troia e as jornadas de Ulisses.

Se Homero realmente viveu no século 10 a.C., então seus poemas foram compostos e transmitidos oralmente, pois na época os gregos eram iletrados. É possível, por outro lado, que o grande bardo tenha vivido no século 8 a.C., quando os gregos desenvolveram um sistema de escrita baseado no alfabeto fenício. Alguns sugerem que, sendo cego, ele tenha ditado seus versos a um ajudante – como faria, milênios depois, o igualmente cego John Milton ao compor outro épico inesquecível, Paraíso Perdido. Seja como for, a Ilíada e a Odisseia chegaram ao período clássico da Grécia (o século 5 a.C., época de Péricles e Platão) devidamente transcritas em pergaminhos de papiro. Cultuadas e imitadas no Império Romano, as epopeias homéricas desapareceram da Europa após as invasões bárbaras. Foram preservadas pelos eruditos de Bizâncio e só voltaram a desembarcar em solo europeu dez séculos depois. Para chegar até nós, os dois poemas máximos do Ocidente viveram jornadas dignas de Ulisses – o mais emblemático personagem de Homero e o mais radical viajante da literatura ocidental.

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